A atual situação de calamidade pública em decorrência da pandemia de Covid-19 vai deixar marcas físicas e sociais nas cidades para as próximas gerações. A gravidade do momento que estamos vivendo levantou críticas às cidades como locais de aglomeração de pessoas que favorecem a eclosão e disseminação de surtos virais e doenças infectocontagiosas. Contudo, vale lembrar que é nas cidades que surgem e se encontram as soluções: é lá que estão os leitos de UTI e os respiradores, é onde estão as universidades e centros de pesquisa que estudam as vacinas e meios de mitigar o problema, é nas cidades que as pessoas contam com os serviços essenciais para resguardar sua saúde, como água tratada e esgotamento sanitário. Pelo menos, deveria ser!
No início do século XX várias epidemias também forçaram a mudanças nas cidades brasileiras. Naquela época, as péssimas condições sanitárias deram carta branca para o alargamento de vias e a expulsão da população mais pobre dos centros urbanos, baseado em modelos urbanos nacionais e internacionais. Em São Luís, é desse período o alargamento da Rua do Egito, a abertura da Avenida Magalhães de Almeida, a remoção de cortiços no centro e a destruição de parte do nosso patrimônio histórico, o mais emblemático a demolição da Igreja Nossa Senhora dos Mulatos. Depois da construção da ponte do São Francisco, a transição foi ainda mais rápida, em um período curto da nossa história ampliamos o tamanho da cidade em oito vezes, escolhemos carros e ônibus como meio de transporte, abrigamos uma parte da nossa classe trabalhadora em conjuntos habitacionais na periferia e deixamos outro contingente ocupar extensas áreas de terra, autoconstruindo a cidade informal e segregada. E São Luís sempre foi a referência para as outras cidades maranhenses.
Chegamos à segunda década do século XXI e uma nova epidemia vem provando a duras penas que a cidades modernas já não respondem adequadamente a outra crise sanitária. A pandemia que nos obrigou a ficar em casa, nos lembrou que muitos maranhenses vivem em condições precárias, às vezes sem água para lavar as mãos. Nosso modelo de ocupação urbana nos deixou reféns de um sistema de transporte caro, ineficiente e gerador de aglomerações, já as poucas praças e parques de grande porte estão a quilômetros de distância dos nossos bairros, em sua maioria renegados à informalidade, situação que ampliou a dificuldade de exercer o distanciamento social, conforme recomendado pela Organização Mundial de Saúde.
Não há como importar modelos, já cometemos esse erro no passado. As cidades maranhenses precisam buscar soluções na sua própria história, cultura e no espírito coletivo do nosso cidadão, sem nos esquecermos das limitações econômicas e sociais. Se essa cidade pós-pandemia prevê menos aglomerações, menos deslocamentos, mais teletrabalho, educação à distância e mais horas em casa é fundamental refletirmos sobre alguns pontos.
O conceito de moradia deve ser ampliado, não se habita somente a casa, se habita a cidade! A casa é o ponto de partida para o trabalho e o lazer alcançados através da mobilidade. Se não podemos mais aglomerar pessoas no transporte público e é fisicamente impossível ter carros e motos para todos, devemos aproximar moradia, trabalho e lazer, permitindo deslocamentos ativos como bicicletas e caminhadas. Nossa estrutura urbana deve ampliar a oferta de espaços públicos qualificados, criando praças, integrando as nossas áreas verdes ao desenho urbano e distribuindo melhor esses espaços no território. A calçada, esquecida e privatizada nos últimos anos, deve ser compreendida como parte integrante do nossos sistemas de mobilidade público, ampliada e qualificada, afinal, independente do modal de transporte é ela que complementa todos os deslocamentos.
A pandemia impôs a parte das nossas empresas, a instituição do teletrabalho e aos nossos estudantes forçou o ensino a distância. Se este for o novo normal, é fundamental que reconheçamos o acesso à internet como um direito e a sua democratização como um dever do estado. No Maranhão, essa agenda do século XXI soma-se a outra agenda do século XX: o acesso universal à água, esgoto, coleta de lixo e drenagem, como garantia de que não sofreremos tanto quando uma outra crise ocorrer.
A pandemia está nos habituando a acompanhar números, taxas, índices, evolução, pesquisas e vários outros dados porque sabemos que o único caminho para vencer a doença é a ciência. Não deve ser diferente com as cidades. Para agirmos devemos ter uma grande quantidade de informação organizada e, por outro lado, focarmos em projetos urbanos menores, na escala do bairro, da vizinhança, de tal forma a poder medir o efeito das intervenções urbanas e avaliar as políticas públicas. Estamos fazendo isso agora com o controle de isolamento social e avaliação das medidas de distanciamento tomadas pelo governo.
Encarar essa nova agenda requer a construção de um pacto pela governança e a participação social. Se o governo federal se retirou do debate urbano com o fim de programas como PAC e Minha Casa Minha Vida, precisamos restabelecer o papel dos entes federativos devolvendo a liderança do planejamento urbano para os municípios, com a cooperação do estado, e ficarmos atentos para as oportunidades geradas por novas organizações como o Consórcio Nordeste.
Autores:
Rubens Pereira Júnior
Arlene de Silva Vieira
José Antônio Viana Lopes
Daniel Borges Sombra
Deixe seu comentário